01/02/2021 às 10:47

A ilha bonita

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Às vezes, aos poucos, sutilmente, emerjo do mundo de Hípnos. Cruzo a linha tênue da consciência e boio na superfície amarrotada pelo sono agitado da noite de calor de minha cama.Aos fatos de fato esse pode parecer um floreio desnecessário. “Acordou sonolento” bastaria.Mas gosto dessa imagem. Do corpo imergindo lentamente num breu profundo e fazendo o mesmo contrário na volta rompendo suavemente a flor da água. E onde mais eu usaria esse conhecimento sobre Hipnos, deus do sono?

Meus olhos não respondem ao primeiro estímulo de abrir. Retumbam em minha mente os ecos distantes do último sonho. São os únicos que se pode lembrar se você não acorda. Li isso em algum lugar, alguém me contou, não sei. A mesma fonte que agora ignoro dizia que sonhamos a noite toda o que me faz pensar: “O que é feito dos sonhos que não lembramos por não acordar? ”

No sonho alguém me reprendia por subir na calçada com o carro. Era um meio fio alto nos arredores de algo como uma igreja. Acho graça com a cabeça meio aqui e meio lá. A voz que me reprendia era minha, não a minha voz falada, mas por minha consciência produzida. Aliás como a calçada, a igreja e o carro. Todos nos nossos sonhos não são outros se não nós mesmos. Como os personagens daquele filme costumeiro da sessão da tarde. Acho que se chama “As sete faces do dr Loo”, ou algo assim. Nossa cabeça sonhando é como aquele pequeno circo, que aliás é como todo circo pequeno. Quando o trapezista não está voando sobre a cabeça das pessoas esplendorosamente, com sua malha branca marcando obscenamente as partes, transita anonimamente entre os pagantes e não pagantes. Seus braços fortes e precisos agora sustentam uma taboa velha travestida toscamente de bandeja pelo papel laminado já bem puído, ofertando pipoca e maçãs do amor.

Tem na casa dos meus pais um monóculo. Trata-se de um pequeno e tosco objeto de plástico que tem dentro um pedaço do tempo. Espia-se no aparato com um olho só, como o próprio nome já explica. É como olhar pelo buraco da fechadura e flagrar o passado. Nele aparecem minha mãe, uma prima eu acho, (ou seria a minha irmã?) na plateia de tábuas atentas ao espetáculo, e eu, atento o ato do fotógrafo. No caso, o produto dessa atenção se tornou um olhar de volta para aquele que agora olha no monóculo. Às vezes, agora, eu mesmo me olho me olhando. Perguntas são acionadas por aquela memória. “Onde estava minha irmã? O que acontece com as fotos que não são compradas? ” Lembro que me fiz essa pergunta quando vi o tal fotógrafo de volta, como sua lanterninha buscando agilmente no grande maço colorido de monóculos ao que a nós correspondia. Não me lembro do ato da compra em si, mas se o temos...

De volta a farsa do sonho, a transgressão de subir na calçada é repudiada por alguém que eu não viro a cabeça para olhar que é. Talvez meu terapeuta diga algo sobre isso.

Procuro por um busto que por alguma razão necessito tocar. O busto parece ser do padre Cícero mas no sonho eu chamo de Madona. Talvez meu terapeuta desista nessa hora.

Madona quer dizer outra coisa, mas para que o google te informe corretamente você terá que ser mais incisivo. Quando descobrir vai perceber que o absurdo dentro do absurdo nem é tanto.

01 Fev 2021

A ilha bonita

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