22/02/2022 às 13:19

Santa Rita

13
3min de leitura

Seu João estava chateado, desconsolado logo cedo. Na casa, só o que andava em passos ritmados era o tictac do velho relógio. Herança do sogro. Fora isso, tudo na casa era antigo e de péssima qualidade, coisas que seu João tinha a muito tempo. Os quadros que esposa pintou com tintas baratas compradas por ele e que agora estão desbotados. Os porta-retratos sem par já lascados com a foto dos filhos bem desatualizadas. O sofá afundado, demarcado pelo uso só de um lado. 

Numa caixa velha de papelão na garagem uma infinidade de cacarecos, entre elas uma tigela que pelo pó quase não se lê mais Tobby. 

Na sala a esposa com uma cara estranha, não gostava de ser fotografada. Pela careta e a maquiagem exagerada feita pela irmã no casamento do caçula quase não se reconhece aquela que esteve com ele por quase cinquenta anos. 

É domingo e ninguém vem. De novo. Atribulações e outros compromissos. Sabe como é. 

Na rua, depois que virou mão única raramente passa carro. Aliás não passa carro, não passa gente nem o cachorro da dona Guiomar late mais por falta de assunto. 

O caso é que hoje, ajeitando o café - solúvel porque é mais fácil - seu João viu da janela da cozinha um pontinho branco no azul do céu. Seu João envelheceu bem, tinha vista boa, nunca precisou de óculos. O tal pontinho tinha uma espécie de calda que o fazia parecer um foguete como esses de filme. Mas a gente no Brasil nem tem foguete. E quem gastaria com gente no Brasil um foguete? 

O caso é que seu João ouvia bem e a coisa não fazia ruído algum. Achava no carro defeito que o seu mecânico demorava a perceber. 

- Pode olhar Agenor. O amortecedor está soltando e batendo. 

Agenor o mecânico não ouvia nada, mas quando ia verificar era batata. A peça começava a afrouxar, bem pouquinho mesmo, algo que alguém de ouvido mediano só iria perceber meses depois. 

O problema é que o tal “foguete” não fazia ruído algum naquela manhãzinha silenciosa de domingo. 

Parecia vir lentamente em sua direção. Seu João ficou ali parado que o café até gelou. A tal coisa vinha lentamente, mas não formava figura que denunciasse sua razão 

Disco voador pensou ele. 

Sempre foi fascinado pela ideia de disco voador e invejava profundamente qualquer um que tivesse histórias de ter visto no céu qualquer coisa que não se pudesse explicar. Lembrou-se de uma velha luneta com a perna quebrada que ele ficou de concertar e nunca o fez. 

Já tinha salvo o equipamento mequetrefe algumas vezes da esposa que não suportava a mania dele de guardar coisas quebradas. 

- Vou arrumar! Dizia seu João enfurecido. 

Ela sabia que não ia, que era mentira. 

Nunca arrumou nada, nem luneta, nem outro cachorro, nada. 

O dilema agora era o seguinte. E se no buscar a traquitana a coisa sumisse? Perderia sua grande chance. A coisa vinha se aproximando a tal calda parecia maior. Mas podia desaparecer do nada como ele ouviu falar em tantos relatos na tevê. 

Adotou a seguinte estratégia. Contava até cinquenta. A coisa não sumia. Fez isso várias vezes até que pôs em prática seu plano. Abriu uma nova contagem e partiu em disparada. Disparada de velho claro. No vinte e três alcançou a caixa das coisas “para concertar” e no afobamento derrubou-a. Traquitana pra todo lado e vasilha do cachorro rolou até o portão quase escapando pra calçada. 

No quarenta e nove chegou na cozinha, mas tropeçou na própria sandália. Ficou no chão até mais de quinhentos e sessenta e nove. Depois parou de contar. Chorou como um menino esquecido na rodoviária. Chorou pela dor nos joelhos, chorou principalmente por ter perdido o seu disco voador. Conseguiu se levantar tempos depois, tremendo muito sem largar a lunetinha. A coisa ainda estava lá, bem maior mais ainda indecifrável. Sentou-se bem devagar na cadeira, curou o joelho com cuspe. Limpou as lágrimas para ver, engoliu o choro sentido e focou a lunetinha ordinária. Era só um balão com a imagem de Santa Rita com longas franjas de papel. Só isso. Um rojão de um tiro só subiu e falhou. O estampido xoxo pareci caçoar de seu João. Naquela rua não passava mais ninguém, mas a vasilha escrita tobby, essa nunca mais voltou.  

Ouça aqui de preferência com fone

22 Fev 2022

Santa Rita

Comentar
Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Twitter
Copiar URL