08/01/2023 às 13:05

Dois bombons.

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4min de leitura

Dois bombons 

de FBarella 

Ouça em:

 

- Uma feijoada e uma coca! 

Nita anotou o pedido e na passada, parada entre uma coisa e outra, notou dois caras parados na porta da birosca.

Nisso, uma mão - que pelo toque não a surpreendeu – acariciou de leve, bem com a pontinha dos dedos os cabelinhos rebeldes da nuca que escapavam do elástico da toca. 

- Gringos? 

- Bolívas é que não. Disse Nita. 

- Ué e boliva não é gringo? Falou rindo. 

- Boliva aqui é mato. 

- Acho que querem sentar. 

- Oxi...e quem não quer? Mas esse horário! Difícil. 

E partiram disparadas de novo pegar pedidos, levar contas e tirar pratos. Uma pra cada lado. 

Os tais "gringos" desistiram de esperar na porta por uma mesa e invadiram. 

Tinha lá dois bancos livres no balcão, mas era por onde saiam os pedidos e seria um problema ficar ali. Enquanto estavam de pé - um que era enorme e careca e que parecia ser o líder, se apercebeu que numa mesa para quatro um sujeitinho que enrolava com um copo com um dedo de café, um tipinho com ar desleixado sem atributo nem brilho. Rodava as imagens no celular tranquilo como estivesse sozinho numa cafeteria na França em plena manhã de domingo. 

- Nita! A minha salada não veio! 

- Feijoada não acompanha salada dona Joana. Vocês, digo, os senhores vão almoçar? 

Ariscou em português achando que não seria entendida. Esse diabo vermelho de sol e óculos escuros não podia ser BR. 

- Vamos sim Linda. Respondeu cordial e grave. 

- Tem gente que vai se tocar que está lotado e já vai levantar. Falou que até da calçada se ouviu. 

Nita se surpreendeu. "BR uai. "

O tal homenzinho que tinha sido alvo da indireta torceu-se pra ver e de quem era a voz e que talvez falasse dele. 

Não achou que estivesse tão perto. Correu a vista de baixo pra cima até encontrar a cabeça sem olhos, ocultos pelas lentes pretas dos óculos. Atrás desse um outro, no segundo plano, um pouco menor, mais magro e cheio de cicatrizes e tatuagens nos braços. Esse encarava-o com uma cordialidade ácida. 

Constatou e saiu saindo voado. 

- Nita fui. Disse indo como um raio sem olhar para trás. 

- Tchau Marquito! 

Mesa vaga e os dois sentaram com Nita e sua colega ainda esfregando seus paninhos encardidos e úmidos. 

Ali era um deus nos acuda, se bobeasse brotava um do chão imundo e ocupava o lugar. 

- O que vai ser rapazes? Os pratos do dia são... 

- Que cerveja você tem querida? (Interrompeu a primeira vez) 

- Tenho Original, Brama, Sko... 

- Original, dois copos. 

- E pra com... 

- X-Bacon. Disse o careca. 

- Aquele ali. Disse o tatuado apontando indelicadamente para o prato na mesa de outro cliente. 

Anotou e passou o pedido pra cozinha, a colega trouxe a cerveja com os copos quase translúcidos por conta das milhares de lavagens meia boca a que foram submetidos. 

Pronto. Os dois forasteiros estavam integrados, totalmente integrados. 

São Paulo, Brás, ninguém naquele restaurante abafado e apinhado de gente era nativo. 

Uma babel, todos de longe, todos com histórias de deslocamento e adaptação. 

O alarido era orquestrado basicamente por pessoas falando alto e facas desdentadas pelejando contra bifes duros. O solo ficava por conta de um menino boliviano com uma cabeleira densa e seu choramingo bilíngue. Chorava sem lágrimas, a mãe era uma jovem morena de cabelos tingidos de loiro rasgando num espanhol furioso com seu companheiro que segurava mudo um bebê tão indiferente a tudo que parecia estar morto. 

Avulsa mas na mesma mesa, sem dar trabalho uma terceira criança que apesar do tamanho já comia sozinha. 

Na mesa diretamente ao lado, umas quatro pessoas na qual se destacava um ancião esguio, com porte e postura. Sua camiseta preta parecia acabar de ter sido fabricada de tão nova. No peito, um pingente grande dourado com forma geométrica. Um Ronaldo Asper que não deu certo. Os óculos não eram muito escuros de forma que se podia ver os olhos cansados, as sobrancelhas pintadas assim como os cabelos e as unhas. 

Parecia um ator tinha sido famoso a muito tempo atrás, tentando fingir querer passar desapercebido pra almoçar em paz. 

Na mesa hispânica pesquei um “maricon” no atropelo indignado da fala da falsa loira que o olhava de rabo de olho. 

Nita para no caixa e respira, contempla o caos. Fala com um, cumprimenta outro sempre atenta. 

Sua colega se achega de novo. Lhe escorrega a mão para dentro do bolso de trás no jeans apertado sobre a bunda e cochicha algo. Nita sorri de canto de boca com os olhos maliciosos focados em nada e em tudo. 

O tatuado das cicatrizes vai até elas... “Cê fecha a nossa?” 

- Só pagar no caixa querido. 

O querido faz sinal para o outro que rapidamente se levanta e vem.

Pescou num pote grande e sem tampa 2 sonhos de valsa. Pagou a conta deixou o troco. 

Despediu-se entregando um bombom para Nita e outro pra sua colega, sorriu um sorriso sínico e sumiu pra sempre. 

O cara do caixa achou graça e riu desengonçado olhando a cara confusa das duas pelo lance inusitado. 

Nita jogou o bombom de volta no pote e pediu pra anotar pra ela o crédito. 

Olhou para amiga com o papel metalizado na não e a bochecha embolotada. Desaprovou-a virando os olhos e partiu pra outra mesa. 

- Nita! E a salada? 

Na calçada a placa escrita a giz diz: 

Pratos dia: Arros, feijão, bife e batatas fritas. Acompanha salada. 

ou. 

Feijoada. 

19,90 

Arte capa : Naum Alves de Souza


08 Jan 2023

Dois bombons.

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